Arquivo mensal: junho 2011

Cinética e Equilíbrio Químico

Ferro no Sol

Escrito em 23/11/2009

ultravioleta ferro ionizado onze vezes
A luz ultravioleta que é emitida pelo ferro ionizado 11 vezes quando em temperaturas de 2 milhões de graus Celsius foi usada para registrar a imagem acima do Sol em 22 de Setembro. A imagem foi captada pela câmara EIT a bordo da espaçonave SOHO, um observatório espacial que pode observar o Sol de forma ininterrupta. Ferro ionizado onze vezes é um ferro atômico com onze de seus elétrons arrancados. Estes elétrons são removidos pelas frenéticas colisões com outros átomos e elétrons que ocorrem as temperaturas extremas da coroa solar. Pelo fato dos elétrons serem carregados negativamente, o átomo de ferro resultante é altamente positivo.

Imagem original em
http://www.nasaimages.org/luna/servlet/detail/NVA2~4~4~4419~104945:The-Iron-Sun

ÁTOMO–história e descoberta dos “tijolos” do universo.

Série produzida pela BBC-4  sobre a história do átomo … excelente documentário.

 

 

 

 

 

A História sob o Olhar da Química: As Especiarias e sua Importância na Alimentação Humana

 

Ronaldo da Silva Rodrigues, Roberto Ribeiro da Silva

Originalmente publicado em Química Nova na Escola, v. 32, n. 5, 2010

Apoio: Sociedade Brasileira de Química

Edição: Leila Cardoso Teruya

Coordenação: Guilherme Andrade Marson

Fatos ligados à história têm sido sugeridos como alternativas, visando possíveis melhorias no ensino de Ciências. Adicionalmente, pesquisas recentes descritas na literatura buscam relacionar o uso da história com objetivos de uma alfabetização científica, que busque romper com as imagens deformadas da Ciência. Dentre as justificativas apresentadas, podemos citar algumas tais como: a) pode ser motivadora; b) contradiz o cienticifismo e o dogmatismo presente nos textos escolares; c) favorece a interdisciplinaridade; d) é um instrumento eficiente na oposição ao presenteísmo muito comum entre os jovens de hoje; e) pode contribuir para uma análise da diversidade cultural; e f) muitos fatos da história são do conhecimento dos alunos (Pereira e Silva, 2009). A história das especiarias, sem sombra de dúvida, encaixa-se dentro de algumas das justificativas apontadas acima. Viajemos por ela.

O processo de efetiva ocupação da América pelos europeus a partir do século XVI foi ocasionado, inicialmente, pela necessidade desses povos em traçar novas rotas para tornar mais acessível o comércio das especiarias, termo atribuído a mercadorias caras e difíceis de serem obtidas e usadas para temperar comida.

Em 1453, o império turco-otomano tomou Constantinopla e colocou sob seu jugo todo o comércio dos principais condimentos utilizados na alimentação europeia bem como as rotas para alcançá-los. No velho continente, as especiarias eram imprescindíveis por comporem os conservantes de alimentos e por serem utilizadas como remédios, afrodisíacos, temperos, perfumes, incensos etc. Praticamente todos necessitavam dessas “dádivas” da natureza (Nepomuceno, 2005).

Não apenas o ouro e a prata, mas também os sabores e odores d’além mar fizeram parte das motivações que impeliram homens a lançarem-se rumo ao oceano desconhecido em busca de fortuna. Os metais preciosos sempre foram alvo da cobiça dos seres humanos, mas por qual motivo as especiarias eram tão importantes? Para se ter uma ideia do valor que era conferido a esses produtos, basta dizer que o primeiro mapa que incluiu o novo mundo e lhe atribuiu o nome de América, feito pelo monge alemão Martin Waldseemüller, em 1507 (Menezes e Santos, 2006), identificava determinadas regiões do globo com pequenos textos nos quais constavam comentários a respeito desses alimentos1.

As quatro mais valorizadas naquele tempo eram a pimenta-do-reino, o cravo, a canela e a noz-moscada. De acordo com Nepomuceno (2005), essas especiarias “eram moedas de troca, dotes, heranças, reservas de capital, divisas de um reino. Pagavam serviços, impostos, dívidas, acordos e obrigações religiosas” (p. 25). Segundo essa autora, as principais especiarias comercializadas na época das grandes navegações eram nativas da Ásia Tropical2, das florestas quentes e úmidas, e não podiam ser produzidas na Europa. Assim,

[…] eram compradas secas e dessa forma utilizadas. Sua grande durabilidade, resistência a mofos e pragas nos longos tempos de estocagem, tornara possível e próspero seu comércio: suportavam por meses e até anos as travessias por mar ou terra sem perder as qualidades aromáticas e medicinais. (p. 25)

O comércio com os produtos advindos do Oriente era tão lucrativo que deu origem a homens extremamente ricos na Europa. Eduardo Galeano (1992), na obra As veias abertas da América Latina, registra que Karl Marx, no livro I do segundo volume de O Capital, destacou que “o descobrimento das jazidas de ouro e prata da América, […] o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a conversão do continente africano em local de caça de escravos negros: são todos feitos que assinalam os alvores da era de produção capitalista” (p. 39). Muitos desses abastados negociantes ergueram ou prejudicaram reis somente com o poder do capital que detinham e das negociatas lucrativas que articulavam.

Os navegadores saíram em direção ao oeste (o que ocasionou a posterior ocupação das Américas pelos europeus) e ao sul, contornando a África. Segundo Huberman (1986), em sua primeira viagem à Índia, Vasco da Gama obteve um lucro de 6.000%! Como essa oportunidade comercialmente lucrativa não poderia ser explorada por uma única pessoa nem mesmo por um pequeno grupo delas devido aos altos custos envolvidos, surgiram, a essa época, as sociedades por ações, capazes de levantar os enormes capitais necessários ao gigantesco empreendimento de comércio com a Ásia, África e, posteriormente, América. Foram criadas, então, sete companhias das “Índias Orientais” (as mais famosas eram a inglesa e a holandesa) e quatro companhias das “Índias Ocidentais” – como era chamado o continente americano. O importante era saber que mesmo algumas expedições realizadas por corsários foram organizações com base na sociedade por ações. A própria rainha da Inglaterra possuía ações de uma das campanhas do famoso pirata Francis Drake3 (Huberman, 1986).

A descoberta de novas rotas em busca de especiarias do Oriente não ocasionou a diminuição do preço desses artigos na Europa. Pelo contrário, a busca por riqueza desmedida aumentou o preço dessas mercadorias, e esse fator aliado a outros (como, por exemplo, a guerra) foi mais que suficiente para espalhar a miséria entre uma boa parte da população da Europa, África, Ásia, Oceania e América. Vasco da Gama (em 1503), ao retornar cinco anos após a sua primeira e “amigável” visita à Calicute – na costa oeste da Índia –, não teve a intenção de realizar qualquer tipo de negócio com os governantes da região. Segundo Le Couteur e Burreson (2006), lá desembarcou com os soldados a seu comando e tomou à força a cidade, garantindo o controle português sobre o comércio da pimenta e o início do que viria a ser o império português que se estendeu por parte da África, da Índia, da Indonésia e do Brasil.

Da mesma forma que os portugueses, espanhóis, holandeses e ingleses cobiçavam praticar o comércio das especiarias. No século XVII, os holandeses dominaram essa atividade garantindo o seu monopólio depois que expulsaram das Molucas os últimos espanhóis e portugueses. Para consolidarem o comércio de noz-moscada produzida nas ilhas de Banda (na Indonésia), massacraram a população local, escravizando os que sobraram, além de destruírem as árvores de noz-moscada que não estavam situadas em torno de suas construções fortificadas (Le Couteur e Burreson, 2006). Além disso, negociaram em 1667 a saída dos britânicos da região, cedendo-lhes a Nova Amsterdã (atual Nova York).

Nesse contexto, a elite europeia financiou a viagem por mar de aventureiros capazes de trazer, diretamente do Oriente, as tão desejadas mercadorias. Assim eles poderiam vendêlas e garantir a entrada de metais preciosos via comércio exterior em seu território.

Curiosamente, a utilização de dinheiro na atividade de compra e venda desses produtos levou para o dia a dia do europeu […] uma abstração própria de um tipo de raciocínio teórico, antes patrimônio exclusivo de intelectuais, no qual símbolos podiam representar objetos concretos. Além disso, a manipulação da moeda nas sociedades em franco desenvolvimento comercial gerou a necessidade do aprendizado do cálculo matemático pela gente simples das cidades e dos campos.

[…] Em pouco tempo multiplicaram-se as escolas de cálculo, e a matemática passou a fazer parte da formação das populações urbanas. (Braga e cols., 2004, p. 18-19)

Por conta dessa necessidade prática da matemática, outras áreas do conhecimento acabaram também se desenvolvendo. Nas discussões cotidianas, como já havia ocorrido há bem mais tempo nas rodas filosóficas, confirmava-se a capacidade que a racionalidade representada pelos números tinha para encontrar a solução de muitos problemas. A partir daí, “começaram a ser procurados novos caminhos, que utilizassem a linguagem matemática na busca da verdade” (Braga e cols., 2004, p. 21). A avidez pelo comércio transformou a Holanda em uma potência na exploração de novas terras, impulsionando a tecnologia nessa nação. Em todos os países exploradores da Europa, os problemas impostos pelas navegações provocaram o desenvolvimento da engenharia (invenção de máquinas capazes de marcar melhor o tempo), da astronomia (definição de pontos de referência no céu tão importantes para a navegação noturna), enfim, de diversas áreas do conhecimento. Na Itália, os abastados comerciantes financiavam aqueles que detinham a técnica de manipular os materiais naturais disponíveis e promoveram a construção de palácios, catedrais e todo tipo de edificações e obras de arte capazes de tornar a vida nas cidades mais confortável e mais agradável.

A metodologia prática necessária ao trabalho nas navegações suscitou, em alguns filósofos, a ideia de que o conhecimento deveria ser construído a partir da experiência, como já havia sido sugerido em textos da Antiguidade: “o progresso tecnológico requeria liberdade na busca do conhecimento. As aventuras em terras exóticas sacudiam a mesmice desafiando a sabedoria vigente e mostrando que ideias aceitas há anos poderiam estar erradas” (Sagan e Soter, 2000, s/p). Nessa visão, identificam-se aspectos do que seria denominado para a ciência moderna como experimentação (Braga e cols., 2004). Dessa forma,

[…] as grandes navegações mudaram por completo a história da Europa. Além de serem fundamentais para o estabelecimento da ciência moderna, possibilitaram a queda de vários mitos medievais. Além disso, mostraram que a adoção de um planejamento para a investigação podia levar, não só a novos conhecimentos, mas à superação e correção dos antigos, dando vida a um novo ideal: o progresso (p. 32-33)

As especiarias, tão importantes quando analisadas sob o ponto de vista político e econômico, tiveram sua relevância social retratada também pela elite artística daquele período (Figuras 1 e 2). Muitas pinturas registraram sua utilização na preparação de vários pratos e na composição de valorizados costumes como, por exemplo, o de consumir chá em reuniões sociais ou familiares (Figura 3). Assim, não podemos negar que esses alimentos possuem características intrínsecas que certamente os colocaram em situação de destaque e possibilitaram sua exploração comercialmente lucrativa. Nesse sentido, encontramos na literatura justificativas capazes de esclarecer o motivo da extrema valorização das especiarias na época das grandes navegações com base na forma como eram utilizadas.

Figura 1: Cozinheira. Obra de Frans Snyders, 1630. Museu Wallraf-Richartz, Colônia (Alemanha). Cozinheira moendo temperos em um almofariz. Notam-se sobre a mesa, entre outras coisas, cravos-da-índia e diferentes animais abatidos. Fonte: WGA (2008).

Figura 1: Cozinheira. Obra de Frans Snyders, 1630. Museu Wallraf-Richartz, Colônia (Alemanha). Cozinheira moendo temperos em um almofariz. Notam-se sobre a mesa, entre outras coisas, cravos-da-índia e diferentes animais abatidos. Fonte: WGA (2008).

Uma dessas explicações diz respeito à capacidade de as especiarias servirem para conservar as carnes ou para mascarar o gosto infecto das malconservadas. Entretanto, para Flandrin e Montanari (1998), essa explicação se revela insatisfatória. Em primeiro lugar, segundo eles, porque os agentes de conservação das carnes já conhecidos naquela época eram o sal, o vinagre, o óleo e não as especiarias. Em seguida, porque, com exceção das salgas, as carnes eram comidas muito mais frescas do que atualmente.

Figura 2: Refeição com ostras. Pintura de Pieter Claesz, 1633. Os cidadãos abastados de Haarlem (na Holanda) estavam particularmente abertos ao gosto refinado exibido no café da manhã. Nessa pintura, notam-se, entre outras coisas, pão, avelãs, um limão cortado e descascado, ostras e um pequeno cone de papel com pimenta. Fonte: WGA (2008).

Figura 2: Refeição com ostras. Pintura de Pieter Claesz, 1633. Os cidadãos abastados de Haarlem (na Holanda) estavam particularmente abertos ao gosto refinado exibido no café da manhã. Nessa pintura, notam-se, entre outras coisas, pão, avelãs, um limão cortado e descascado, ostras e um pequeno cone de papel com pimenta. Fonte: WGA (2008).

Outra tese considera que muitos desses produtos importados do Oriente não tinham uma função culinária, mas terapêutica. Flandrin e Montanari (1998) revelam que em um livro intitulado Le thresor de santé (O tesouro da saúde), publicado em 1607, está registrado que a pimenta-do-reino

[…] mantém a saúde, conforta o estômago […], dissipa os gases […]. Cura os calafrios das febres intermitentes, cura também picada de cobras. Quando bebida, serve para tosse […] mastigada com uvas passas purga o catarro, abre o apetite. O cravo-da-índia, por sua vez, serve para os olhos, para o fígado, para o coração, para o estômago. Seu óleo é excelente contra dor de dentes. Serve […] para as doenças frias do estômago […]. Ele ajuda muito na digestão, se for cozido num bom vinho com semente de funcho. (p. 480-481)

Figura 3: Tigelas de chá chinesas. Pieter Gerritsz. van Roestraeten – séc. XVII – Museu do Estado, Berlim. O chá estava entre os principais itens de importação holandesa. Fonte: WGA (2008).

Figura 3: Tigelas de chá chinesas. Pieter Gerritsz. van Roestraeten – séc. XVII – Museu do Estado, Berlim. O chá estava entre os principais itens de importação holandesa. Fonte: WGA (2008).

Dessa forma, imaginava-se que todas as especiarias tivessem propriedades semelhantes. Inclusive essa função medicinal precedia a utilização da especiaria como condimento, pois os temperos empregados na cozinha no fim da Idade Média foram importados, a princípio, como medicamento e só depois para temperar alimentos.

Assim, do século XIII ao início do século XVII, os médicos não cessaram de recomendar o uso de especiarias no tempero das carnes para torná-las mais fáceis de digerir. Segundo Flandrin e Montanari (1998), Aldebrandin de Siena escreveu em seu Le régime du corps (1256) que a canela tem a capacidade “de reforçar a virtude do fígado e do estômago […] [e de] fazer que a carne tenha um bom cozimento […]; [os cravos-da-índia] reforçam a natureza do estômago e do corpo, […] eliminam a ventosidade e os maus humores […] engendrados pelo frio, e ajudam no cozimento da carne” (p. 481) etc.

Naquele tempo, todos aqueles instruídos pela restrita educação elitista entendiam a digestão como um processo de cozimento. O mais importante agente desse processo era o calor animal, responsável pelo lento cozimento do alimento no estômago. Segundo essa visão, as especiarias contrabalançavam a casual frieza dos alimentos, contribuindo assim para a sua cocção, uma vez que todas elas eram classificadas como quentes e, em sua maioria, secas (Flandrin e Montanari, 1998).

Livros de cozinha franceses publicados entre o século XIV e meados do século XVI atestam que as especiarias eram utilizadas em 58 a 78% das receitas, e ácidos, em 48 a 65%. Nessa perspectiva, as especiarias (consideradas quentes e secas) eram “desmanchadas”, “diluídas” ou “neutralizadas” com ácidos (sempre frios e secos) antes de serem adicionadas ao prato. Supunha-se que os ácidos teriam a propriedade de se infiltrar nos canais mais estreitos e, assim, esperava-se que eles levassem o calor das especiarias para todas as partes do corpo. Dos materiais de caráter ácido utilizados pelos cozinheiros franceses, dois apareciam com maior frequência: o agraço (suco extraído de uvas verdes) e o vinagre.

Dado que os conceitos de medicina antiga eram muito próximos da experiência vulgar, os princípios da dietética podiam ser difundidos por outros meios além dos livros. Todos, na sociedade medieval, os aprendiam comendo – como acontece ainda hoje com todos os tipos de sociedades que consomem especiarias. Os provérbios antigos testemunham a circulação oral de determinadas prescrições da dietética antiga. Acreditava-se, por exemplo, que as carnes salgadas provocavam o escorbuto, por isso sempre eram consumidas com um “antiescorbuto”: a mostarda. Daí os provérbios do século XVI:

De carne salgada sem mostarda/ Libera nos Domine. Que Deus nos proteja: de mulher que se pinta, de criado que em frente ao espelho tarda, e de carne de boi sem mostarda. (Flandrin e Montanari, 1998, p. 494)

Portanto, o uso dos temperos tinha pelo menos dois objetivos: tornar os alimentos mais apetitosos e de fácil digestão. Podemos dizer que cozinhar naquela época, assim como hoje, era dar aos alimentos os sabores mais agradáveis de acordo com as crenças dietéticas e os hábitos alimentares dos indivíduos de uma determinada cultura.

Na América do Sul, antes da colonização, a população autóctone tinha a seu dispor muitas plantas adequadas para temperar seus alimentos, cujos sabores tiveram sua boa qualidade comprovada pelo paladar dos próprios exploradores, dos mais antigos aos mais contemporâneos. Conforme registrou o marechal Cândido Mariano Rondon, após suas viagens pelo interior do Brasil no início do século XX, certas tribos preparavam o peixe para suas refeições de forma incomparável (Cascudo, 2004).

Os nativos, diferentemente dos invasores, não temperavam seu alimento antes ou durante o seu cozimento. A carne que não fosse consumida ainda fresca, por exemplo, era conservada a partir de um processo denominado moquém (a carne era tostada ao calor). Nas palavras de Lery4 (apud Cascudo, 2004), ao preparar seu tempero preferido,

[…] os selvagens pilam (a pimenta) com sal, que sabem fabricar retendo a água do mar em valos. A essa mistura chamam Ionquet e a empregam como empregamos o sal; entretanto não salgam os alimentos, carne, peixe etc., antes de pô-lo na boca. Tomam primeiro o bocado e engolem em seguida uma pitada de Ionquet para dar sabor à comida. (p. 120)

De acordo com os registros da época, muitos dos habitantes destas terras não gostavam do sal e sequer o usavam de forma isolada. Mesmo sendo bem reduzida a sua ingestão, esses indivíduos não apresentavam qualquer problema relacionado à sua falta. Para Cascudo (2004), a pele dos nativos sul-americanos era protegida da perda de sais minerais, considerando que sua cobertura com pigmentos naturais retirados do genipapo (Genipa americana) e do urucum (Bixa orellana), argila e pó de carvão reduzia a sudorese. Tanto os povos da África como boa parte dos povos americanos preteriam o sal em favor da pimenta:

Ambos, indígena e negro, eram e são fanáticos pela pimenta cujos alcaloides da Capsicum encarregar-se-iam de estimular-lhes o apetite pela excitação digestiva. De Lagos, na Nigéria, Antonio Olinto5 fala-me, em janeiro de 1963, que a pimenta é empregada em nível inimaginável. As pimentas substituíam o sal e, depois reunidas a ele nas inquitaias e ijuquis, foram suficientes para a castidade gustativa dos dois grupos étnicos. (p. 127)

A pimenta brasileira (do gênero Capsicum), ou quiya, era um condimento largamente utilizado pelos primeiros habitantes das terras americanas. Quase todas as tribos conhecidas no século XVII tinham hortas das quais retiravam a pimenta para condimentar suas refeições. O mercenário alemão Hans Staden, no século XVI, foi testemunha do contrabando realizado pelos franceses na costa brasileira, de onde estes levavam enormes carregamentos de pau-brasil, algodão e pimenta, frutos de negociatas com os tupiniquins (Cascudo, 2004).

Podemos notar a relevância inegável de diferentes condimentos nas mais variadas culturas que estiveram e ainda estão relacionados e dependentes das sensações que podem proporcionar aos nossos sentidos (Quadro 1). A busca pelos condimentos que davam alma às refeições forçou o alargamento dos horizontes geográficos e intelectuais das pessoas que viveram no período da expansão marítima. A Europa passou a ser considerada apenas como mais um lugar no vasto planeta Terra. Por conta dessas novas noções de mundo é que, no século XVI, Copérnico pôde inaugurar a nova astronomia, retirando, das mentes de seus contemporâneos, o próprio planeta do centro do universo.

Notas

1. Para maiores detalhes acesse: memory.loc.gov/cgi-bin/query/h?ammem/gmd:@field(NUMBER+@ band(g3200+ct000725C))

2. A Ásia tropical compreende inúmeros países na atualidade: Índia, Sri Lanka, Maldivas, Paquistão, Nepal, Butão, Bangladesh, Mianmar, Tailândia, Vietnã, Laos, Camboja, Cingapura, Indonésia, Filipinas, Brunei, Malásia (Ísola e Caldini), entre outros.

3. Para os ingleses, Sir Francis Drake era um corsário, ou seja, um “patriota” que pilhava os navios dos inimigos da Inglaterra. No entanto, é claro que para os espanhóis, por exemplo, não passava de um pirata.

4. LERY, J. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Martins, 1941.

5. Mineiro de Ubá, Antonio Olinto é integrante da Academia Brasileira de Letras e fez estudos a respeito da relação entre as culturas africanas e o Brasil.

  • Referências

    1. BRAGA, M.; GUERRA, A. e REIS, J.C. Breve história da ciência moderna. Volume 2: das máquinas do mundo ao universomáquina (séc. XV a XVII). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004

    2. CASCUDO, L.C. História da alimentação no Brasil. 3. ed. São Paulo: Global, 2004.

    3. FLANDRIN, J.L. e MONTANARI, M. História da alimentação. Trad. Luciano V. Machado e Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.

    4. GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. Trad. Galeano de Freitas. 35. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

    5. HUBERMAN, L. História da riqueza do homem. Trad. Waltensir Dutra. 21. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1986.

    6. LE COUTEUR, P. e BURRESON, J. Os botões de Napoleão. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

    7. MENEZES, P.M.L. e SANTOS, C.J.B. Geonímia do Brasil: pesquisa, reflexões e aspectos relevantes. Revista Brasileira de Cartografia. n. 58/02, agosto, 2006.

    8. NEPOMUCENO, R. O Brasil na rota das especiarias: o leva-e-traz de cheiros, as surpresas da nova terra. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

    9. PEREIRA, C.L.N. e SILVA, R.R. A história da Ciência e o ensino de Ciências. Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, Edição Especial, mar. 2009.

    10. SAGAN, C. e SOTER, S. Saga dos viajantes. Série Cosmos. Direção: Adrian Malone. Los Angeles: Cosmos Studios, 2000. DVD.

    11. WGA. Web Gallery of Art.

  • Saiba Mais

    1. PEREIRA, C.L.N. e SILVA, R.R. A história da Ciência e o ensino de Ciências. Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, Edição Especial, mar. 2009. Disponível em (Acesso em 11 dez. 2009.):
      www.ltds.ufrj.br/gis/a_historia.htm

    2. WGA. Web Gallery of Art. Disponível em (Acesso em 01 out. 2008):
      www.wga.hu/index1.html

Explosões: Como abalamos o mundo

Explosions: How We Shook the World
Um show para quem gosta de explosões.
Apresentado pelo engenheiro Jem Stansfield, o documentário conta e demonstra como aprendemos a produzir e controlar os explosivos.

A história vai desde a clássica invenção da pólvora pelos chineses, até o assustador domínio do poder da explosão nuclear. E as demonstrações ficam restritas aos explosivos químicos, afinal não seria muito fácil conseguir alguns quilos de urânio para ´brincar´.

A Descoberta do DNA

 

A Descoberta da Estrutura do DNA: de Mendel a Watson e Crick

Otavio Henrique Thiemann

Originalmente publicado em Química Nova na Escola, n.17, 2003

Apoio: Sociedade Brasileira de Química

Edição: Leila Cardoso Teruya

Coordenação: Guilherme Andrade Marson

Em abril de 2003, o mundo celebrou o cinqüentenário da descoberta da estrutura em dupla hélice do ácido desoxirribonucléico, mais conhecido como DNA – sua sigla do Inglês (Watson, 1968; Crick, 1990). A importância dessa descoberta, talvez a mais importante da história da Biologia moderna, reside no fato do DNA de cada célula conter toda a informação genética para as características e funções da mesma. Essa conquista seminal da Ciência está sendo celebrada de diversas formas por ter atualmente um alcance profundo em nosso cotidiano. Com o rápido desenvolvimento científico e tecnológico na área de Biotecnologia, em grande parte iniciado por essa descoberta, diversos aspectos da sociedade moderna estão sendo afetados.

Esse feito envolveu três instituições de pesquisa. O Laboratório Cavendish na Universidade de Cambridge, a Unidade de Biofísica do King’s College, ambos na Inglaterra, e nos Estados Unidos da América, o Instituto de Tecnologia da Califórnia (mais conhecido pela sigla Caltech), em Pasadena, onde houve a contribuição do trabalho de Linus Pauling (1901-1994).

O conceito de que a informação genética das células e dos organismos vivos que determina as características de cada ser vivo está contida nas moléculas de DNA é bem aceito na atualidade, mas nem sempre foi assim. Um grande número de pesquisadores contribuiu para que a função do DNA fosse finalmente identificada.

Primeiros passos

Os primeiros conceitos de genética, publicados em 1865, foram desenvolvidos por um monge austríaco, Gregor Mendel (1822-1884), que trabalhando sozinho deduziu, a partir de experimentos muito bem elaborados com plantas de ervilha, que algumas características são herdadas em “unidades” (Figura 1A). Esse trabalho não foi notado pela comunidade científica até ser descoberto por Hugo De Vries (1848-1935) e seus colaboradores, em 1900, os quais estabeleceram as leis da hereditariedade (Figura 1B). Muito tempo se passou e diversas descobertas foram realizadas descrevendo a composição química das células.

Figura 1: (A) Gregor Mendel e seu jardim no monastério onde realizou os experimentos de cruzamento com plantas de ervilhas, os quais levaram-no a desenvolver suas teorias da hereditariedade. (B) Hugo De Vries; em 1900, ele e seus colaboradores redescobriram os trabalhos de Mendel e formularam as leis da hereditariedade.

Figura 1: (A) Gregor Mendel e seu jardim no monastério onde realizou os experimentos de cruzamento com plantas de ervilhas, os quais levaram-no a desenvolver suas teorias da hereditariedade. (B) Hugo De Vries; em 1900, ele e seus colaboradores redescobriram os trabalhos de Mendel e formularam as leis da hereditariedade.

Poucos anos após os trabalhos de Mendel, em 1868, um jovem pesquisador, Friedrich Miescher (1844-1895), purificou uma nova substância no material nuclear de células, chamada de nucleína (Figura 2). Essa descoberta não causou grande interesse na época, pois a maioria se interessava principalmente pelas proteínas que estavam contidas no núcleo das células.

Figura 2: Friedrich Miescher e seu laboratório, onde realizou as purificações e descobriu a nucleína.

Figura 2: Friedrich Miescher e seu laboratório, onde realizou as purificações e descobriu a nucleína.

A primeira sugestão apontando o DNA como repositório do material genético de uma célula veio do trabalho de Walther Flemming (1843-1905) que, em 1882, descobriu o processo de mitose e o comportamento dos cromossomos durante a divisão celular. Essa descoberta, porém, não tornou o DNA o principal candidato ao posto de carreador da informação genética. Uma série de descobertas descrevem o DNA como um polímero que contém apenas quatro formas químicas diferentes: os nucleotídeos adenina (A), guanina (G), citosina (C) e timina (T) (Figura 3). Em particular, o trabalho de Phoebus Aaron Theodor Levene (1869- 1940), que fez contribuições importantes nesse aspecto e, em 1909, propôs a “teoria do tetranucleotídeo” (Figura 4). Por essa teoria, o DNA seria composto por repetições monótonas desses quatro nucleotídeos. Dessa forma, uma molécula com essa característica, certamente não carregaria informação química suficiente para codificar todas as características necessárias à manutenção de uma célula e à hereditariedade. Pensava-se que essa complexidade esperada do material genético seria satisfeita apenas por proteínas, que são polímeros de 20 aminoácidos.

Figura 3: As unidades do DNA são formadas por um nucleotídeo que é composto por um açúcar (pentose) e uma base nitrogenada. Essa base nitrogenada pode ser de dois tipos, uma purina ou uma pirimidina. Além do DNA, as células também possuem moléculas de RNA (sigla do Inglês para ácido ribonucléico). Este é diferente do DNA por sua molécula ter um outro OH na posição 2’ da pentose (o DNA possui um H) e, ao invés da base timina (T), ter a base uracil (U).

Figura 3: As unidades do DNA são formadas por um nucleotídeo que é composto por um açúcar (pentose) e uma base nitrogenada. Essa base nitrogenada pode ser de dois tipos, uma purina ou uma pirimidina. Além do DNA, as células também possuem moléculas de RNA (sigla do Inglês para ácido ribonucléico). Este é diferente do DNA por sua molécula ter um outro OH na posição 2’ da pentose (o DNA possui um H) e, ao invés da base timina (T), ter a base uracil (U).

Figura 4: A teoria do tetranucleotídeo foi introduzida por Phoebus A.T. Levene, juntamente com inúmeras importantes contribuições de seu trabalho na caracterização química do DNA.

Figura 4: A teoria do tetranucleotídeo foi introduzida por Phoebus A.T. Levene, juntamente com inúmeras importantes contribuições de seu trabalho na caracterização química do DNA.

Apesar disso, a pesquisa com o DNA prosseguiu e, em 1909, um geneticista dinamarquês, Wilhelm L. Johannsen (1857-1927), cunhou o nome “gene” para a unidade descrita por Mendel e, em 1911, Thomas Hunt Morgan (1866-1945), trabalhando com a mosca da fruta, Drosofila melanogaster, mostrou pela primeira vez que os genes estão arranjados de forma linear nos cromossomos (Figura 5).

Figura 5: (A) Wilhelm Johannsen fotografado durante uma apresentação a seus alunos; foi o responsável por cunhar o nome “gene” para a unidade de transferência da hereditariedade. (B) Thomas H. Morgan; trabalhando com moscas de fruta ( Drosophila melanogaster ), identificou que os genes estão arranjados em seqüência nos cromossomos.

Figura 5: (A) Wilhelm Johannsen fotografado durante uma apresentação a seus alunos; foi o responsável por cunhar o nome “gene” para a unidade de transferência da hereditariedade. (B) Thomas H. Morgan; trabalhando com moscas de fruta (Drosophila melanogaster), identificou que os genes estão arranjados em seqüência nos cromossomos.

Evidências sobre o papel do DNA

As evidências experimentais de que o DNA é o material genético surgiram de uma série de experimentos muito elegantes realizados a partir de 1928. Nesse ano, Frederick Griffith, usando extratos químicos, converteu inócuas bactérias de pneumonia na sua forma patogênica. A natureza desse fator de hereditariedade não foi sugerido por ele na ocasião.

Em um interessante livro de 1943, intitulado What is life?, Erwin Schrödinger (1887-1961) apresentou o conceito dos genes serem a componente chave das células vivas ( Schrödinger, 1997). Entretanto segundo os paradigmas da época, ele supôs que os genes seriam uma classe especial de proteínas. Mas logo no ano seguinte, em plena 2ª Guerra Mundial, Oswald T. Avery (1877-1955) e seus colegas, Colin MacLeod (1909-1972) e Maclyn McCarty (1911-) – Figura 6, baseados nas observações de Griffith, demonstraram ser o DNA a molécula responsável pelo princípio transformante. O experimento definitivo surgiu somente em 1952, com os elegantes experimentos de Alfred Hershey (1908-1997) e Martha Chase (1930-) – Figura 7. Dessa forma, ficou consolidada a noção de que o material genético é constituído de moléculas de DNA e não de proteínas, como alguns pesquisadores ainda acreditavam até então. Com isso se tornou de grande importância a descoberta da estrutura dessa intrigante molécula, pois já se especulava que uma descoberta dessa natureza revelaria como a informação é armazenada no DNA e como ela seria transmitida de um indivíduo para seu descendente.

Figura 6: Oswald T. Avery (esq.) e seus colaboradores Colin MacLeod e Maclyn McCarty demonstraram o princípio transformante proposto por Frederick Griffith em 1928.

Figura 6: Oswald T. Avery (esq.) e seus colaboradores Colin MacLeod e Maclyn McCarty demonstraram o princípio transformante proposto por Frederick Griffith em 1928.

Figura 7: Martha Chase e Alfred Hershey; em seus experimentos com bacteriófagos, vírus que infectam bactérias, demonstraram definitivamente que o DNA é o material responsável pela transmissão dos caracteres hereditários.

Figura 7: Martha Chase e Alfred Hershey; em seus experimentos com bacteriófagos, vírus que infectam bactérias, demonstraram definitivamente que o DNA é o material responsável pela transmissão dos caracteres hereditários.

Uma descoberta fundamental para tal foi realizada por Erwin Chargaff (1905-2002), em 1950 (Figura 8). Chargaff investigou a composição do DNA de diversos organismos e concluiu que a composição de bases do DNA varia entre as espécies, mas que amostras de DNA isoladas de diferentes tecidos da mesma espécie têm a mesma composição de bases (A, C, T e G). Ele também pôde observar que a composição de bases do DNA numa dada espécie não muda com a idade do organismo, estado nutricional ou mudanças ambientais. Sua observação mais importante, porém, talvez tenha sido de que em todos os DNA celulares, não importa qual a espécie, o número de bases adenina é igual ao de timina (A = T) e o de guanina é igual ao de citosina (G = C). Essa passou a ser conhecida como “Regra de Chargaff” (Figura 8).

Figura 8: Erwin Chargaff; após inúmeros estudos da composição do DNA em diversos tecidos e varias espécies, concluiu que a ocorrência das quatro bases no DNA obedece às relações A = T e C = G. Esta regra é conhecida como “Regra de Chargaff”.

Figura 8: Erwin Chargaff; após inúmeros estudos da composição do DNA em diversos tecidos e varias espécies, concluiu que a ocorrência das quatro bases no DNA obedece às relações A = T e C = G. Esta regra é conhecida como “Regra de Chargaff”.

Passos para a descoberta da estrutura do DNA

Entre 1944 e 1945, Maurice Wilkins (1916-) – Figura 9 – trabalhava em processos de separação de isótopos de urânio com espectrógrafos de massa no Projeto Manhattan, em Berkeley (EUA). Nesse período, leu o livro de Schrödinger e se interessou pelo tema. Depois de ler os artigos publicados pelo grupo de Avery, Wilkins supôs que o DNA era o transmissor da hereditariedade e, em 1947, foi para Londres trabalhar com John T. Randall (1905- 1984) – Figura 9 – sobre vários temas ligados ao DNA, na récem-criada Unidade de Biofísica do King’s College. Iniciou os primeiros experimentos de difração de raios X com fibras de DNA em 1950, depois de receber uma pequena quantidade de DNA muito puro de Rudolph Signer, um bioquímico suíço.

Figura 9: Rosalind E. Franklin trabalhou com Maurice Wilkins no estudo do DNA. Wilkins e John Randall trabalharam juntos na Unidade de Biofísica do King’s College em Londres.

Figura 9: Rosalind E. Franklin trabalhou com Maurice Wilkins no estudo do DNA. Wilkins e John Randall trabalharam juntos na Unidade de Biofísica do King’s College em Londres.

Os experimentos de difração de raios X realizados no laboratório de Wilkins foram conduzidos por Rosalind Elsie Franklin (1920-1958) – Figura 9, que se juntou à Unidade de Biofísica do King’s College em novembro de 1951 para trabalhar com DNA (sobre Franklin, vide Farias, 2001 ou Maddox, 2002). Ela produziu fibras muito finas de DNA e as irradiou com um feixe ultrafino de raios X. Em pouco tempo ela descobriu que o DNA se apresentava em duas formas diferentes, as quais denominou de A e B (Figura 10). A forma A, facilmente fotografada, correspondia a fibras de DNA desidratadas, enquanto a forma B correspondia a fibras molhadas de DNA. Apesar de mais difícil de registrar com os raios X, a forma B mostrava um padrão compatível com uma hélice (Figura 10). Uma vez que a água poderia ser atraída pelos grupos fosfato do DNA, e este poderia ser facilmente hidratado e desidratado, ela sugeriu que os fosfatos do DNA se localizavam no exterior da hélice e as bases nitrogenadas (A, C, G e T) estariam assim voltadas para o interior.

Figura 10: Duas fotos de difração de raios-X obtidas por Rosalind ranklin e Maurice Wilkins do DNA desidratado (A) e hidratado (B). O exame da foto de difração do DNA B permitiu a Watson e Crick concluírem diversas características da hélice.

Figura 10: Duas fotos de difração de raios-X obtidas por Rosalind ranklin e Maurice Wilkins do DNA desidratado (A) e hidratado (B). O exame da foto de difração do DNA B permitiu a Watson e Crick concluírem diversas características da hélice.

Ao mesmo tempo, no Caltech, Pauling (Figura 11) também estava trabalhando para resolver a estrutura do DNA, com o uso de poucos dados experimentais: apenas algumas fotos de difração de fios de cabelo e seu aguçado bom-senso químico. Essas duas ferramentas, associadas ao uso de modelos moleculares, levaram Pauling a deduzir a estrutura em hélice alfa para as proteínas.

Figura 11: Linus Pauling, fotografado com modelos da estrutura alfa hélice de proteínas, também se dedicou a resolver a estrutura do DNA.

Figura 11: Linus Pauling, fotografado com modelos da estrutura alfa hélice de proteínas, também se dedicou a resolver a estrutura do DNA.

A descoberta da estrutura do DNA

Nesse mesmo ano, Francis Harry Crick (1916-) – Figura 12 – estava trabalhando em sua tese de doutorado no Laboratório Cavendish, estudando a estrutura cristalina da hemoglobina, sob orientação de Max Perutz (1914- 2002). Crick se formou em Física e durante a 2ª Guerra trabalhou para o Almirantado Britânico, indo estudar Biologia em 1947. Em 1949 se juntou à unidade chefiada por Max Perutz e sir William Lawrence Bragg (1890-1971) – Figura 12. Nesse período, Crick conheceu James Dewey Watson (1928-) – Figura 12 -, que muito influenciou sua carreira.

Figura 12: Francis Crick e James Watson foram trabalhar juntos em Cambridge sob a supervisão de Max Perutz e John Kendrew, respectivamente, no grupo liderado por sir William Lawrence Bragg.

Figura 12: Francis Crick e James Watson foram trabalhar juntos em Cambridge sob a supervisão de Max Perutz e John Kendrew, respectivamente, no grupo liderado por sir William Lawrence Bragg.

Watson, formado em Biologia e com um doutorado em Zoologia estudando o efeito de raios X na multiplicação de bacteriófagos (vírus que infectam bactérias), realizou seu primeiro ano de pós-doutorado em Copenhagen. Nessa época, conheceu Wilkins em um simpósio em Nápoles. Ao assistir a palestra de Wilkins, ficou estimulado pelas imagens de difração de DNA e decidiu mudar o rumo de sua pesquisa. No outono de 1951, mudouse para o Laboratório Cavendish, trabalhando sob a supervisão de John C. Kendrew (1917-1997) – Figura 12. Em pouco tempo Crick e Watson se tornaram amigos e descobriram seu interesse comum pela estrutura do DNA. Eles consideraram que seria possível resolver a estrutura do DNA baseados nas imagens de difração obtidas por Franklin e Wilkins, do King’s College, e por um cuidadoso exame das configurações estereoquímicas da cadeia de polinucleotídeos. A abordagem seria semelhante à usada por Pauling, usando modelos e dedução lógica. A primeira investida de Watson e Crick para resolver a estrutura foi naquele mesmo outono de 1951. Crick se encarregou de realizar os cálculos teóricos fundamentais sobre a difração de hélices. Nessa mesma época Watson foi assistir a um seminário de Franklin no King’s College sobre seus dados de difração; porém, por não tomar nota dos dados apresentados por ela, errou a quantidade de água estimada por Franklin nas fibras de DNA. Baseados nessa informação incorreta, eles decidiram que a hélice de DNA deveria ser composta por três cadeias de nucleotídeos. Para poderem obter a regularidade de hélice observada nos experimentos de difração, decidiram que os fosfatos estariam posicionados para o interior da estrutura e não, para o exterior. Para compensar as cargas negativas dos fosfatos, adicionaram ao modelo íons magnésio no interior da hélice (Figura 13).

Figura 13: (A) Se sabia que o DNA era um polímero de nucleotídeos, onde um nucleotídeo e o seguinte são unidos por uma ligação tipo fosfodiester. Esse fosfato confere a característica ácida ao DNA. (B) Primeira proposta de Watson e Crick para a estrutura do DNA: uma tripla hélice com os fosfatos no interior e as bases para fora (no modelo, para compensar as cargas negativas dos fosfatos, eles introduziram íons de magnésio).

Figura 13: (A) Se sabia que o DNA era um polímero de nucleotídeos, onde um nucleotídeo e o seguinte são unidos por uma ligação tipo fosfodiester. Esse fosfato confere a característica ácida ao DNA. (B) Primeira proposta de Watson e Crick para a estrutura do DNA: uma tripla hélice com os fosfatos no interior e as bases para fora (no modelo, para compensar as cargas negativas dos fosfatos, eles introduziram íons de magnésio).

No ano seguinte, o filho de Linus Pauling, Peter, foi para Cambridge fazer doutorado com Kendrew. Por intermédio dele, Watson e Crick ficaram sabendo de um artigo de Pauling descrevendo a estrutura do DNA como uma tripla hélice, à semelhança da estrutura em que estavam trabalhando. Rapidamente perceberam o erro, pois os fosfatos para o interior da estrutura os tornariam protonados e assim o DNA perderia o seu caráter ácido.

Esse erro de Pauling estimulou-os a retomarem com vigor essa linha de pesquisa, pois sabiam que não demoraria muito para Pauling perceber o seu erro e corrigi-lo. Em uma discussão com Wilkins no King’s College sobre o artigo de Pauling, Watson viu novamente as figuras de difração do DNA na forma hidratada (B), obtidas por Franklin, e ficou sabendo de sua conclusão de que os fosfatos deveriam estar do lado de fora da hélice.

Depois de seguidas tentativas, em 28 de fevereiro de 1953 Watson fez modelos das bases (A, C, G e T) em pedaços de cartão (Figura 14), na tentativa de identificar possíveis modos de interação. Percebeu então que os pares A – T e C – G formavam ligações de hidrogênio, resultando em pares de dimensões quase idênticas, o que permitiria que a hélice se mantivesse com o mesmo diâmetro, independente do pareamento de bases no interior. Esse arranjo satisfez à regra proposta por Chargaff, pela qual A = T e C = G. Depois de trabalharem sobre esse modelo por mais alguns dias, refinando o mesmo para que fosse coerente com os dados de difração de raios X, eles chegaram ao modelo final (Figura 14).

Figura 14: Empregando as bases desenhadas em cartões, Watson percebeu como deveriam se formar pontes de hidrogênio entre elas e a importância da relação de Chargaff. Nesta figura está ilustrada a primeira hipótese na qual o número de pontes de hidrogênio entre C e G é de apenas duas. Posteriormente verificaram a possibilidade de se formarem três pontes entre C e G. Finalmente, após alguns refinamentos no modelo, chegaram à proposta final da estrutura do DNA.

Figura 14: Empregando as bases desenhadas em cartões, Watson percebeu como deveriam se formar pontes de hidrogênio entre elas e a importância da relação de Chargaff. Nesta figura está ilustrada a primeira hipótese na qual o número de pontes de hidrogênio entre C e G é de apenas duas. Posteriormente verificaram a possibilidade de se formarem três pontes entre C e G. Finalmente, após alguns refinamentos no modelo, chegaram à proposta final da estrutura do DNA.

Pouco depois, em março, Wilkins e Franklin visitaram o laboratório onde trabalhavam Watson e Crick para ver o modelo (Figura 15). Nessa ocasião, Franklin mostrou seus dados que inquestionavelmente posicionavam os fosfatos para fora da hélice. Em uma visita subseqüente de Linus Pauling, eles mostraram o modelo que foi rapidamente aprovado por Pauling. Em 2 de abril de 1953 submeteram seu modelo da estrutura do DNA em um artigo para a renomada revista Nature. A esse artigo seguiu-se a proposta de um esquema de replicação da molécula de DNA (mostrado na Figura 15, à direita).

Figura 15: Famosa fotografia de Watson e Crick explicando seu modelo aos visitantes do laboratório. A informação de Franklin de que os fosfatos deveriam estar do lado de fora da molécula foi crucial para a montagem do modelo.

Figura 15: Famosa fotografia de Watson e Crick explicando seu modelo aos visitantes do laboratório. A informação de Franklin de que os fosfatos deveriam estar do lado de fora da molécula foi crucial para a montagem do modelo.

No ano seguinte, Crick obteve seu título de doutor com a tese “Difração de raios X: polipeptídeos e proteínas”. Mais tarde, e em colaboração com Sydney Brener, Crick contribuiu com avanços fundamentais no campo da síntese de proteínas e do código genético.

Em 1962, Crick, Watson e Wilkins compartilharam o Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia pela descoberta da estrutura do DNA. No mesmo ano, Perutz e Kendrew dividiram o Prêmio Nobel de Química pelos estudos estruturais de proteínas globulares (Figura 16).

Figura 16: Foto de Maurice Wilkins, John Steinbeck, John Kendrew, Max Perutz, Francis Crick e James Watson, quando do recebimento dos Prêmios Nobel de Medicina ou Fisiologia, de Literatura e de Química, em 1962.

Figura 16: Foto de Maurice Wilkins, John Steinbeck, John Kendrew, Max Perutz, Francis Crick e James Watson, quando do recebimento dos Prêmios Nobel de Medicina ou Fisiologia, de Literatura e de Química, em 1962.

O modelo proposto por Watson e Crick explica perfeitamente os dados de difração de raios X e permite deduzir a forma de replicação da molécula de DNA. Representa até hoje um marco na história da Ciência, permitindo a fundação da área de pesquisa hoje conhecida como Biologia Molecular, na qual a manipulação do DNA recombinante tem papel fundamental.

  • Referências

    1. CRICK, F. What mad pursuit: a personal view of scientific discovery. Nova Iorque, HarperCollins Publishers, 1990.

    2. FARIAS, R.F. de. As mulheres e o Prêmio Nobel de Química. Química Nova na Escola, n. 14, p. 28-30, 2001.

    3. MADDOX, B. Rosalind Franklin: the dark lady of DNA. Nova Iorque, HarperCollins Publishers, 2002.

    4. SCHRODINGER, E. O que é vida? O aspecto físico da célula viva seguido de mente e matéria e fragmentos autobio- gráficos. Trad. J. de P. Assis e V.Y.K. de P. Assis. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997.

    5. WATSON, J.D. The double helix: a personal account of the discovery of the structure of DNA. Nova Iorque, The New American Library, 1968.

    6. FERREIRA, R. Watson & Crick. A história da descoberta da estrutura do DNA. São Paulo: Odysseus, 2003.

    7. HAUSMAN, R. História da Biologia Molecular. Ribeirão Preto, Funpec Editora, 2002.

    8. STRATHERN, P. Crick, Watson e o DNA em 90 minutos. Trad. M.L.X.A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

A Energia e a Química

 

Renato José de Oliveira, Joana Mara Santos

Originalmente publicado em Química Nova na Escola, n. 8, novembro 1998

Apoio: Sociedade Brasileira de Química

Edição: Leila Cardoso Teruya

Coordenação: Guilherme Andrade Marson

Desde que o ser humano surgiu na face da Terra, deparou com estranhos fenômenos que hoje dizemos estar ligados ao conceito de energia. Dentre eles, possivelmente o fogo foi o mais impressionante. Dominá- lo significava dar um grande passo para lidar com a escuridão, o frio e outras situações pouco confortáveis impostas pela natureza.

A importância do fogo para os seres humanos foi tal que diferentes mitologias fizeram relatos dele. Os antigos gregos, por exemplo, consideravamno propriedade dos deuses. Quando o titã Prometeu1 roubou o fogo sagrado de Zeus para ofertá-lo aos seres humanos, sofreu na carne o peso da ira divina: condenado a viver acorrentado a um rochedo, tinha seu fígado devorado por um abutre todos os dias2. Uma vez comido pela ave, o órgão se regenerava durante a noite para novamente lhe servir de alimento ao amanhecer.

Tendo aprendido a fazer a queima (cujo princípio só seria estabelecido muitos séculos mais tarde por Lavoisier), será que o ser humano teria começado a fazer química? À primeira vista somos tentados a dizer que sim, uma vez que o domínio das técnicas de combustão permitiu o desenvolvimento da cerâmica e da metalurgia, entre outras realizações. Todavia, se entendermos por química não um conjunto de técnicas de manipulação e produção de materiais e sim uma ciência que articula planos de investigação empírica a modelos explicativos racionais, é preciso responder que o começo só se dá efetivamente com Boyle, no século XVII.

Por que razão com ele e não com outros? Toda demarcação tem seus critérios (que inclusive podem ser questionados), mas, em função do que foi dito, as palavras do próprio Boyle são esclarecedoras:

“Os químicos se têm deixado guiar até agora por princípios estreitos e sem nenhum alcance elevado. A preparação de medicamentos, a extração e a transmutação de metais era seu terreno. Eu trato de partir de um ponto de vista completamente distinto, pois considero a química não como um médico ou um alquimista, mas como deve considerá-la um filósofo. Tracei um plano de filosofia química que espero completar com minhas próprias experiências e observações.” (apud Papp e Prelat, 1950, p. 56-57).

Buscando uma definição para o calor

Tanto a física quanto a química interessam- se pelo estudo das trocas térmicas entre os corpos. Francis Bacon (1561-1626), um dos fundadores da ciência experimental moderna, buscou reunir elementos que pudessem explicar a natureza e melhor colocar o calor a serviço da humanidade. Investigador meticuloso, Bacon propôs que fossem listados todos os fenômenos em que ele estivesse presente e também aqueles em que estivesse ausente. Depois, passou à elaboração de uma terceira lista (ou tábua, conforme sua própria denominação), com o objetivo de distinguir os graus de manifestação mais ou menos intensa.

As tábuas baconianas pretendiam arrolar observações isentas de qualquer teorização prévia. Assim, tocar em um recipiente contendo cal virgem (óxido de cálcio) logo após a adição de água ou manusear o esterco recente de um cavalo eram experiências que acusavam a presença do calor. Por outro lado, perceber que certos metais (ouro, por exemplo) não produziam calor sensível quando dissolvidos pela água-régia era um indicativo da ausência do fenômeno. Examinando o comportamento de diferentes materiais, tornava-se possível compará-los (terceira tábua) e concluir que o tijolo, a pedra e o ferro, depois de aquecidos ao rubro, conservavam calor por muito tempo.

Segundo Bachelard (1996, p. 74), a qual conclusão chegou finalmente Bacon? “O infeliz calor, premido pelo juiz [no caso, o próprio Bacon], é forçado a confessar que é um ser ansioso, agitado e fatal para a existência civil de todos os corpos”. Embora a conclusão possa ser hoje risível, cabe salientar duas coisas, a primeira em defesa de Bacon: o mais importante era a proposição de um método para instruir o intelecto na investigação da natureza. A segunda critica o autor: nenhuma pesquisa científica pode prescindir de hipóteses ou mesmo de teorias prévias, já que a observação e a experiência, por si sós, não levam a razão muito longe.

Os estudos sobre a natureza do calor estiveram sempre na ordem do dia para os químicos e físicos dos séculos XVIII e XIX. Lavoisier apoiava a chamada ‘hipótese calórica’, segundo a qual o calor se devia à transmissão de um fluido (calórico) dos corpos mais quentes para os mais frios. Uma discussão interessante a esse respeito é apresentada no artigo “Quanto mais quente melhor: calor e temperatura no ensino de termoquímica”, em Química Nova na Escola nº 7 (Mortimer & Amaral, 1998).

No campo industrial, as aplicações do calor foram se tornando progressivamente mais importantes. O escocês James Watt patenteou, em 1769, a primeira máquina a vapor, desencadeando a procura por engenhos com eficiência cada vez maior, isto é, com maior rendimento na conversão de calor em trabalho mecânico. Tal corrida resultou na criação de uma área de conhecimento para o estudo dos fenômenos térmicos: a termodinâmica, que estabeleceu os princípios da conservação da energia (primeiro princípio) e do aumento da entropia do universo (segundo princípio).

A termodinâmica promoveu uma abertura de pensamento que levou os(as) cientistas a se tornarem mais exigentes com respeito às teorias que formulavam. Em vista disso, em fins do século XIX, a ‘hipótese calórica’ perdia prestígio e novos meios de explicação eram buscados. Uma ferramenta importante nessa busca foi a teoria atômico-molecular, que serviu de apoio a Ludwig Boltzmann para a formulação da teoria cinética dos gases3. Reconhecida somente após sua morte, a teoria de Boltzmann levou os físicos do século XX a estabelecer os atuais conceitos de temperatura (medida do grau de agitação molecular médio de um corpo) e calor (fluxo de energia entre corpos mantidos a diferentes temperaturas).

Associando química e energia

Com o primeiro princípio da termodinâmica, o termo energia passou a ser bastante utilizado no vocabulário científico. Diz-se, sem maiores problemas, que a corda de um arco — quando esticada — armazena energia potencial elástica, que é convertida na energia cinética do movimento descrito pela flecha. Dentre muitas outras transformações energéticas de amplo domínio, destaca-se a produção de energia elétrica a partir das quedas d’água: a energia potencial da água é transformada em energia cinética e esta é convertida em energia elétrica. Não há dúvida de que o princípio de conservação de energia é um modelo explicativo bem-sucedido, mas é preciso ter cuidado com alguns de seus usos, como acontece quando se fala na conversão da chamada energia química em outras formas de energia e viceversa. Marcelo Gleiser (1997, p. 217), por exemplo, afirma que:

“A quantidade total de energia deve ser a mesma, antes e depois: a energia química armazenada no óleo da lamparina é igual à energia usada para aquecer o ar à sua volta e no interior do cilindro mais a energia potencial gravitacional do pistão na posição elevada4.”

Na verdade, o que é convertido em calor (energia térmica) e em trabalho mecânico não é a energia química armazenada no óleo e sim o saldo energético do processo de queima. Na reação de combustão, dentre os diversos fatores que contribuem para a produção de energia, os mais significativos são os referentes à quebra e à formação de ligações químicas intra e intermoleculares: o processo de quebra das ligações da(s) substância(s) combustível(eis) e do comburente é endotérmico, enquanto o processo de formação de novas ligações nos produtos é exotérmico. A energia térmica resultante (a energia liberada é maior que a absorvida) da combustão — e não simplesmente a energia química contida no óleo — é que permite aquecer o ar, mover o pistão etc.

Alguns livros didáticos, atuais e antigos, também empregam o termo energia química em discussões ligadas a processos eletroquímicos. Feltre (2 ed., 1996: 390) e Nabuco e Barros (1989: 164), por exemplo, se reportam à conversão de energia química em elétrica a partir das reações espontâneas que têm lugar nas pilhas. Novais (1982: 251) afirma que “por outro lado, na niquelação de uma peça metálica, teremos o processo contrário: energia elétrica está se transformando em energia química”.

Nos casos citados, observa- se que os autores atribuem à noção de energia química estatuto de algo cuja natureza é facilmente compreensível, bastando vinculá-la à ocorrência de algum tipo de reação química. Mas será que tal facilidade de compreensão realmente existe? Antes de responder, cabe examinar outra questão que naturalmente pode surgir: de onde vem a energia química?

Alguns livros de nível universitário buscam explicar como as substâncias armazenam energia. Kotz e Treichel (1995, p. 258-259) e também Brady (1990, p. 171) referem-se à energia química como sendo a energia potencial que as substâncias possuem devido às atrações e repulsões entre suas partículas subatômicas. Tais conteúdos energéticos podem ser alterados por meio de reações químicas: “quando as substâncias reagem, ocorrem mudanças na natureza das atrações (ligações químicas) entre seus átomos, portanto há mudanças na energia química (energia potencial) que observamos sob a forma de energia liberada ou absorvida no curso da reação” (Brady, op.cit.).

Já o trabalho de Denial e colaboradores (1985, p. 472-475), voltado para o ensino secundário, ao discutir o conteúdo energético das substâncias químicas, coloca o verbo to contain (armazenar) e seus correlatos entre aspas. Isso denota a preocupação em conferir à idéia de ‘estocagem’ de energia mais o sentido de uma licença de linguagem do que propriamente o sentido utilizado na vida cotidiana. Ademais, os autores explicam o conceito de energia química tendo em vista todo um conjunto de interações no nível atômico e molecular. Para tanto, recorrem às noções de energia potencial eletrostática (ligações químicas) e de energia cinética (rotacional, vibracional e translacional). Isso se dá possivelmente com o objetivo de evitar que o termo energia química adquira um significado vazio. Esse esvaziamento da definição traz como conseqüência o risco de permitir que ela sirva tão somente para ocultar um amplo desconhecimento dos vários fatores que intervêm quando as substâncias reagem.

Em vista disso, cabe perguntar: por que não falar em energias envolvidas nos processos químicos? A vantagem de usar essa terminologia é, sem dúvida, permitir que se faça referência às energias potencial, eletrostática e cinética sem que seja preciso reuni-las em um conceito específico: o de energia química. Este, a princípio tido como esclarecedor, na verdade se torna obscuro quando isolado de um contexto explicativo mais amplo, o qual não é acessório e sim essencial para sua fundamentação. Tanto no caso do óleo da lamparina quanto no dos processos eletroquímicos (pilhas e eletrólise), mencionou- se a energia química com omissão do referido contexto explicativo. O conceito, assim empobrecido, em vez de facilitar, dificulta a aprendizagem, porque retém o pensamento no patamar de uma simplicidade apenas aparente.

Considerações finais

Mas o que é, afinal, a energia? O termo é de origem grega (energéia) e significa força ou trabalho. Em 1807, o físico inglês Thomas Young propôs que a energia fosse definida como capacidade para realizar trabalho, conceito que é até hoje amplamente utilizado. Contudo, essa definição nada diz sobre a natureza mais específica da energia. Isso não nos deve deixar constrangidos, pois outras questões igualmente desafiadoras podem ser colocadas: qual é a origem da carga do elétron? A partir do que ela é gerada? O que são os neutrinos, cujas massa de repouso e carga elétrica são nulas? Perguntas embaraçosas não faltam e formulá-las é próprio do pensamento científico. Elas nos mostram que, ao trabalharmos com definições, não devemos tomá-las como ‘peixes de aquário’, que criamos e nunca nos cansamos de admirar. A química, a exemplo das demais ciências, deve ser encarada como fonte de abertura do pensamento, a qual se dá por meio da retificação de antigos conceitos, de profundas desilusões intelectuais com respeito ao que a razão tomava por expressão final de verdade. Como dizia o filósofo Bachelard (1970, p. 90), que aliás também era professor de química, o espírito humano desperta intelectualmente na “derrocada do que foi uma primeira certeza, na doce amargura de uma ilusão perdida”.

Notas

1. Na mitologia grega, os titãs eram considerados semideuses, por serem mais fortes e perfeitos que os seres humanos. Da palavra titã deriva o nome dado ao elemento titânio, assim chamado por sua grande resistência mecânica.

2. Há outras versões que mencionam diferentes intervalos de tempo: a cada ano, a cada cem anos etc.

3. A despeito dos trabalhos anteriores desenvolvidos por físicos como J.J. Waterson (1845) e J.C. Maxwell (1860), consideramos Boltzmann o principal formulador da teoria cinética dos gases por ter chegado às leis da termodinâmica aplicando métodos estatísticos à descrição do movimento das moléculas gasosas.

4. O autor está se referindo a um sistema simples, composto por um cilindro provido de êmbolo móvel, aquecido por meio de uma lamparina. O ar no interior do cilindro se expande e eleva o êmbolo.

  • Referências

    1. BACHELARD, Gaston. Études. Paris: J. Vrin, 1970.

    2. ________. A formação do espírito científico. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

    3. BACON, Francis. Novo organon. In: Bacon, coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

    4. DENIAL, M.J., DAVIES, L., LOCKE, A.W., REAVY, M.E. Investigating chemistry. 2. ed. Londres: Heineman Educational Books, 1985.

    5. GLEISER, Marcelo. A dança do universo: dos mitos de criação ao Big Bang. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

    6. KOTZ, John C. e TREICHEL, Paul Jr. Chemistry & chemical reactivity. 3. ed., EUA: Saunders College Publishing, 1995.

    7. MORTIMER, Eduardo F. e AMARAL, Luiz Otávio F. Quanto mais quente melhor: calor e temperatura no ensino de termoquímica. Química Nova na Escola, n. 7, p. 30-34, mai. 1998.

    8. PAPP, Desiderio e PRELAT, Carlos. E. Historia de los principios fundamentales de la química. Buenos Aires: Espasa, 1950.

    9. BRADY, James E. General chemistry: principles and structure. 5. ed. Nova York: John Wiley & Sons, 1990.

    10. FELTRE, Ricardo. Fundamentos da química. 2. ed., São Paulo: Moderna, 1996.

    11. NABUCO, João R. da Paciência e BARROS, Roberto Viseu de. Físicoquímica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1989.

    12. NOVAIS, Vera L. Duarte de. Físicoquímica. São Paulo: Atual, 1982.

  • Saiba Mais

    1. ROSMORDUC, Jean. Uma história da física e da química: de Tales a Einstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

    2. MORTIMER, Eduardo F. e AMARAL, Luiz Otávio F. Quanto mais quente melhor: calor e temperatura no ensino de termoquímica. Química Nova na Escola, n. 7, p. 30-34, mai. 1998.
      qnesc.sbq.org.br/online/qnesc07/aluno.pdf

Super areia deixa água cinco vezes mais pura

Redação do Site Inovação Tecnológica – 24/06/2011

Super areia para purificação de água

A super areia tem uma capacidade de filtragem cinco vezes superior à da areia regular. [Imagem: Gao et al./ACS]

Cientistas desenvolveram uma técnica para transformar a areia comum – o material filtrante mais usado em todo o mundo para purificar a água potável – em uma “super areia”.

A super areia tem uma capacidade de filtragem cinco vezes superior à da areia regular.

Nanomaterial

Mainak Majumder e seus colegas da Universidade Rice, nos Estados Unidos, lembram que a areia tem sido usada para purificar a água há mais de 6.000 anos – a areia ou cascalho de filtração de água é endossada pela Organização Mundial de Saúde.

A transformação da areia em super areia começou com um nanomaterial chamado óxido de grafite.

Os pesquisadores usaram um método simples para recobrir os grãos de areia com as nanopartículas de óxido de grafite.

O novo material filtrante conseguiu remover inclusive o metal pesado mercúrio, além das moléculas de corantes diluídas na água.

Filtro de metais pesados

No teste com o mercúrio, a areia comum ficou saturada em 10 minutos de filtração, enquanto a super areia absorveu o metal pesado por mais de 50 minutos.

Segundo os cientistas, “o desempenho da filtragem é comparável a alguns filtros de carbono ativado disponíveis comercialmente.” – com a vantagem de que a super areia deverá ser um material muito mais barato.

“Estamos agora pesquisando estratégias que nos permitirão montar as partículas funcionalizadas de óxido de grafite sobre os grãos de areia de forma a aumentar ainda mais a eficiência de remoção de contaminantes,” escrevem eles.

A mesma equipe já havia desenvolvido um nanofiltro usando nanotubos de carbono, capaz de remover vírus e bactérias da água. A dificuldade de processamentos dos nanotubos de carbono, contudo, tornam aquele nanofiltro menos custo-efetivo.

Bibliografia:
Engineered Graphite Oxide Materials for Application in Water Purification
Wei Gao, Mainak Majumder, Lawrence B. Alemany, Tharangattu N. Narayanan, Miguel A. Ibarra, Bhabendra K. Pradhan, Pulickel M. Ajayan
Applied Materials & Interfaces
Vol.: 3 (6), pp 1821-1826
DOI: 10.1021/am200300u

Hexafluoreto de enxofre – uma molécula para odiar

 

No podcast produzido pela Royal Society of Chemistry, o Professor Dr. Andrea Sella comenta que existe uma molécula que ele realmente odeia, e esta é o hexafluoreto de enxofre (SF6).

InChI=1/F6S/c1-7(2,3,4,5)6

O hexafluoreto de enxofre já fez famosas aparições em diversos vídeos pela internet, em um deles a elevada densidade do gás faz com que este acumule no fundo do recipiente em que é gentilmente colocado, causando um efeito semelhante a um ´líquido invisível´;

 

 

em outro vídeo Adam Savage, apresentador do programa Mythbusters, mostra a influência do gás na voz. Na primeira parte do vídeo Adam inala hélio, ficando com voz de Pato Donald, e logo em seguida inala hexafluoreto de enxofre, tornando a voz forte e pesada.

 

Tal mudança na voz ocorre pela diferença de vibração das cordas vocais quando em presença destes dois tipos de gases.

Mas porque Andrea Sella poderia odiar um gás? Ele argumenta corretamente que o SF6 é um gás extremamente inerte, permanecendo estável mesmo em condições severas. E justamente por isso tem aplicação em situações nas quais algo inerte é desejado, como por exemplo na indústria de produção de magnésio, na qual serve como uma capa de proteção de contato do magnésio com o oxigênio do ar. E o ódio de Sella torna-se claro quando lembra que o SF6 é um gás-estufa extremamente potente, com um efeito 32.000 vezes maior do que o gás-estufa CO2, se considerado um intervalo de 500 anos de atuação; que certamente será ainda maior, já que o SF6, por ser inerte, tem uma expectativa de duração na atmosfera de mais de 3200 anos.

A indústria, já sabendo destes problemas, busca constantemente modos de substituir o uso do material por outras substâncias menos agressivas ao meio ambiente.

Talvez não só a voz ganhe um timbre de vilão com o gás, mas ele próprio mostra o seu lado traiçoeiro.

Podcast
http://www.rsc.org/chemistryworld/podcast/CIIEcompounds/transcripts/SF6.asp

Para baixar o podcast, em inglês, acesse
http://www.rsc.org/images/CIIE_SF6_tcm18-197761.mp3

 

 

Química super fina gera polímero biodegradável em processo contínuo

Redação do Site Inovação Tecnológica – 02/05/2011

Microrreator: Química super fina gera polímero biodegradável em processo contínuo

A matéria-prima química flui através do microcanal, repleto de esferas recobertas com a enzima catalisadora, saindo polimerizada do outro lado.[Imagem: Kundu et al./NIST]

Química fina e verde

Quando se fala em produção em escala industrial, sempre se imagina grandes fábricas, consumindo toneladas de matérias-primas por hora e gerando outras tantas toneladas de produtos.

Isso principalmente porque escala industrial sempre foi equivalente a produzir mais para que o preço por unidade do produto seja mais baixo.

Mas há inúmeros casos em que os produtos se originam de reações extremamente delicadas, feitas em pequena escala – e gerando produtos cotados em milhares de dólares por grama.

Esta chamada “química fina” está agora se voltando para a produção de polímeros “verdes”, biodegradáveis e mais ambientalmente corretos.

Microrreator

Pesquisadores do Instituto Nacional de Padronização e Tecnologia dos Estados Unidos, acreditam que o melhor caminho para otimizar as reações da química fina e criar uma química fina verde está na tecnologia microfluídica.

A microfluídica é a tecnologia usada para construção dos biochips usados em exames médicos e pesquisas biológicas, mas também está presente em todas as impressoras jato-de-tinta, onde a tinta deve ser disparada sobre o papel em quantidades medidas em picolitros – 1 picolitro é igual a 10-12 litros

Usando um pequeno bloco de alumínio, a equipe da Dra. Kathryn Beers escavou microcanais dentro dos quais é possível realizar as reações que produzem os biopolímeros com uma precisão e um rendimento difíceis de obter em grande escala.

“Nós desenvolvemos um microrreator que nos permite monitorar a polimerização contínua à base de enzimas,” diz ela. “Essas enzimas representam uma tecnologia verde alternativa para fabricar esses polímeros – nós estamos focando no poliéster.”

Fabricação paralela

Em tão pequena escala, o processo ainda não é competitivo com as grandes fábricas, mas a abordagem é duplamente promissora.

Em primeiro lugar, os dados da observação da reação no interior dos minúsculos canais podem ajudar a melhorar o processo industrial em larga escala, tornando-o mais eficiente.

Em segundo lugar, é possível vislumbrar um futuro no qual esses microrreatores poderão ser colocados para funcionar em paralelo, criando superfábricas de produtos biodegradáveis da mesma forma que os chips são postos para funcionar em paralelo para criar os supercomputadores.

Microrreator: Química super fina gera polímero biodegradável em processo contínuo

A matéria-prima química flui através do microcanal, repleto de esferas recobertas com a enzima catalisadora, saindo polimerizada do outro lado. [Imagem: Kundu et al./NIST]

Polímero biodegradável

O grupo está estudando a síntese do PCL, um poliéster biodegradável usado em dispositivos médicos e utensílios domésticos descartáveis.

O PCL é sintetizado usando um catalisador orgânico à base de estanho, um produto altamente tóxico.

Os pesquisadores já descobriram uma forma mais ambientalmente correta de produzir o PCL, usando uma enzima produzida pela levedura Candida antartica.

Mas o processo tradicional, de jogar tudo dentro de um grande reator industrial, é muito ineficiente, quando se usa as enzimas como catalisador, para competir comercialmente com a técnica tradicional.

Química contínua

Dentro do microrreator, porém, o processo se dá na forma de um fluxo contínuo ao longo dos seus microcanais. A matéria-prima química flui através do microcanal, repleto de esferas recobertas com a enzima catalisadora, saindo polimerizada do outro lado.

Esse processo contínuo permite um monitoramento preciso da temperatura e do tempo de reação, que depende da velocidade na qual a matéria-prima é bombeada para dentro do microrreator.

Os dados detalhados da cinética química do processo podem então ser usados para desenvolver modelos mais acurados da reação, eventualmente escaláveis para os grandes reatores industriais.

Bibliografia:
Continuous Flow Enzyme-Catalyzed Polymerization in a Microreactor
Santanu Kundu, Atul S. Bhangale, William E. Wallace, Kathleen M. Flynn, Charles M. Guttman, Richard A. Gross, Kathryn L. Beers
Journal of the American Chemical Society
Vol.: 133 (15), pp 6006-6011
DOI: 10.1021/ja111346c